A menina não usava sapatos. Não porque não quisesse. Mas porque seus pais eram tão pobres que não tinham dinheiro para comprar para a menina um par de sapatos decentes como ela merecia. Ela só usava chinelos e um par de sapatos velhos quando ia para a igreja aos domingos.
Na igreja a menina observava os pés das meninas. Apenas os pés. Não se importava com os vestidos com estampas miúdas de flores e nem com os vestidos com fitas coloridas. Tampouco prestava atenção nas borboletas delicadas aplicadas com cuidado sobre o algodão. Nem ligava para as casinhas de abelhas demoradamente e caprichadamente feitas sobre o que cobriria o colo das meninas. Se ela se interessava pelos babados que faziam com que as meninas parecessem um bolo de festa? Nem. As meninas ficavam como o bolo que ela via na padaria da esquina que ficava sempre cheia de gente gulosa e chique.
A mãe da menina dizia que para aquela padaria iam as pessoas mais ricas da cidade. “Aqui, a bola do sorvete custa o mesmo que um pacote de arroz de cinco quilos do bom”.
Dizia sua mãe que nunca pudera comprar um pacote de arroz do bom. Aliás, com a evolução da enfermidade do pai da menina, comiam do que o padre mandava.
O padre era gente muito boa que se preocupava com os seus paroquianos pobres. Ele juntava as migalhas que os paroquianos ricos deixavam na casa paroquial para doação a fim de terem suas culpas aliviadas e arrumava cestas de alimentos com a ajuda da dona Cida, senhora muito devota e caridosa que sempre esteve ao lado do padre desde que para ali ele chegou, quando ainda bem moço, recém saído do seminário. Em meio a conversas sérias e a fofocas, ele e a dona Cida organizavam com capricho as cestas de alimentos. Tomavam o cuidado para que todos tivessem os mesmos alimentos e o mesmo tanto de cada um deles. “Repartir, dona Cida. Repartir é o segredo. Jesus alimentou uma multidão com cinco pães e dois peixes. E é preciso ser justo”.
A menina que não tinha sapatos decentes como merecia, não ligava para os vestidos e nem para os sorvetes e doces da rica padaria. Mas achava um absurdo uma bola de sorvete custar o mesmo tanto que um saco com cinco quilos de arroz. O sorvete acabaria num minuto. O saco de arroz, bem regrado, duraria vários dias. A menina que não tinha sapatos, tinha muitos pensamentos. E pensava que não compreendia muitas coisas...
O tempo passou para todos como deve passar. E o pai da menina morreu. E a morte do pai trouxe tristeza, mas também alegria. E os pensamentos da menina pensaram que essa vida é muito esquisita... Com a morte do pai, as despesas com remédios acabaram. E, como não havia mais o pai para inspirar cuidados, a mãe pode trabalhar. “Vamos ter dois salários: a pensão do seu pai e o meu.” Disse a mãe. Assim que a mãe da menina recebeu a primeira pensão do marido, ela que sabia que sua filha sonhava em ter sapatos decentes como ela merecia, a levou a uma sapataria. O sapato escolhido foi comprado em prestações. Era vermelho e de verniz. Os pés da menina doíam um pouco quando estavam calçados com eles. Mas aos domingos na missa, sentia-se como a princesa do sapato de vidro. A menina também ganhou vestidos. A mãe guardou o primeiro sapato decente que a menina teve. E a menina, mulher charmosa que se fez, tem sempre um par de sapatos novos vermelhos na sua sapateira.
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